segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Feliz Ano Novo

Brinde ao Ano Novo !!!

 
Um Brinde Camaradas! Que o Novo Ano vos traga saúde e Amor, ergo este Brinde a todos os Camaradas que nos têm ajudado a erguer estas recordações, que ficarão no tempo, como prova da nossa existência. Bem Hajam pois!
Como grande prova de Amizade, deixo aqui este meu pequeno Poema, para que possamos sempre lembrar, os Eternos Ausentes...

 
Eternos ausentes...

De pé esperei enquanto uma lágrima corria ao sabor do vento
aos poucos suavizei as minhas recordações
no fundo de um copo que estava sempre vazio
...

... na alegria dos rostos dos camaradas que esvoaçavam
como se fossem aves portadoras de amizade ou de recordações
o rosto fechado, vincado, anónimo por vezes
era visivel, no meio deste palco da vida
palco enorme

A quem eu sempre chamei o barco da noite escura
que avançaçava deixando na sua rota
os lábios dos que nos queriam
e através de um perfil préviamente traçado,
deixava cada vez mais longe as mulheres com cruxifixos
e braços espirituais...
as mulher como se fossem estátuas, ficavam
com o seu ser envolto em chamas, e
com gritos silenciosos, como se os gritos pudessem
ser silenciosos, gravados nas suas pupilas.

Mulher, Mãe, Amante, que não veio como a noite prometera
numa enorme nuvem que pairava sob as nossas cabeças...
ai o meu coração coberto de cinza e de carne estropiada
chorou imensamente por saber que não podia voltar....

A amante que ficou só algures no cais
castigada pelo destino
afogava ao mesmo tempo o seu amor na caveira
deste inferno carnal e desesperante!...

os anos passaram,
mas tal como as vossas, Mães, Mulheres ou Amantes

Eu também não vos esqueci!...
 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Querida Mãe

 
QUERIDA MÃE

É este o primeiro Natal que passo longe de ti.

A saudade que tenho dentro de mim é tão grande que, sem querer, sinto um enorme vazio no peito e os olhos já sem querer, diversas vezes, se me arrazaram de água!

Acredita Mãezinha que não estou a ser piegas, pois a vida há muito se encarregou de me fazer perder esses sentimentalismos e aqui, onde se luta, não há tempo para comoções desta espécie.

Também não é porque me sinta triste ou me sinta doente, pois de saúde, graças a Deus, estou bem.

É talvez porque as recordações que neste momento me ocorrem são terrivelmente nitidas e as saudade do que já foi é tão pungente, que até os pormenores que até aqui me pareciam perdidos num nevoeiro espesso, se tornaram hoje mais nitidos e os seus contornos agora estão absolutamente definidos!

Acreditas Mãezinha que hoje já me passaram pela lembrança todos os Natais da minha vida?

Lembro-me, quando ainda era novo pequenino, tu me aconchegavas na minha caminha, para que o frio que havia lá fora nada podesse contra mim. Quando então me me davas aquele beijo tão quente e terno docemente me embalavas para que o sono viesse breve eu lutava desesperado pois queria não me deixar dormir para ver se daquela vez eu iria ver o Menino Jesus descer pela chaminé com o seu saco de presentes!

Lembras-te daquele Natal em que nevou? Lembras-te Mãezinha, quando de manhã cedinho saltei da cama e descalço corri para a janela e achatando o nariz nas vidraças geladas, bati as mãos inocentes de contente ao ver tudo coberto de neve?

- Que lindo Natal foi aquele!

Recordo-me de todas as nossas ceias de consoada, quando o Avôzinho que toda a vida teve a cabeça coberta de neve tão branca e imaculada como o manto que cobria a sujidade dos caminhos, me ensinava a pôr as mãos e então rezavamos por todos aqueles que tinham plantado as árvores cujas achas agora ardiam e crepitavam na lareira e, por aqueles que tinham contribuido para que a ceia da consoada fosse tão quente e tão feliz! Acreditas minha mãe, que ainda hoje me impressionam somente de pensar naqueles breves instantes de meditação e respeito, pois então sentia como que a presença de todos os antepassados à volta daquela mesa imaculada!? Era decerto modo o tributo que tinhamos para pagar para com eles!

- Era de facto um momento solene!

E quando todos juntos iamos repartir as «filhós» e as rabanadas, pelos parentes, pelos amigos, pelos criados, e pelos pobrezinhos!

Este Natal será para mim bem diferente! Podes crer que contudo aqui no meu Batalhão nos vamos esforçar para que desta minha nova Familia, este Natal seja igual àqueles que cada um passava em nossas casas.

Olhe Mãezinha, vamos ter na noite de Natal um serão onde camaradas meus tocarão, pois formaram cá um conjunto musical, «Gemeos-6». Teremos teatro feito por um grupo de moços que foram ensaiados por um outro que era já artista na vida civil. Havemos todos de cantar as canções que o nosso Capelão nos ensinou e aqueles que sentirem vocação para o fado cantarão também; mas então nós ouviremos em silêncio. Como vês vamos fazer u serão como aqueles que faziamos ai à lareira! Sabes minha mãe também também vamos ter a Missa do Galo! Simplesmente é pena que cá não neve pois assim a noite talvez fosse irmã daquela que tu ai vais passar, mas se fecharmos os olhos não será dificil ver nas nossas mentes, a paisagem quente da noite toda branca e imaculada como eram as noites frias de Natal da nossa infância e se Deus quiser havemos de ter Paz naquela noite!

Então quando erguermos a Deus as nossas preces, havemos de lembrar aqueles dos nossos que já partiram para a Eternidade e também aquelas Mães para quem este Natal de Saudade, pois não têm ao menos como tu, uma carta do filho querido distante. Havemos de pedir também pela nossa querida Pátria, para que a Paz volte à nossa Terra e para que não seja jamais preciso que os nossos irmão mais novos tenham que vir passar Natais como este, onde a presença do arame farpado diga que a Paz ainda não chegou.

E quando o nosso Capelão nos lançar a sua benção, havemos de ir depois atacar, mas desta vez o bacalhau com batatas e se tivermos de fazer saùdes eu hei-de brindar por ti, minha querida Mãe para que Deus te dê um Natal Feliz, para que te dê uma vida longa e embora a distância que nos separa seja grande, havemos de vos ter ter a todos na mesa da nossa consoada.

Quando por fim o dia vencer a noite tornar-nos-emos todos a reunir, os do Batalhão para assistirmos a uma tarde desportiva. Queres saber um segredo? Nós cá na Companhia estamos já a treinar para ver se conseguimos ganhar todas as competições não esquecendo claro está, o concurso de Presépios, em que queremos que o nosso seja o melhor!

Como vês querida mãe, temos muito que fazer para aqui prepararmos o nosso Natal, que queremos belo e sublime como foram todos aqueles que nós passamos com as Familias. Queremos que cada um se sinta mais próximo de nós um Natal feliz e de Paz. Queremos também que este Natal seja o prelúdio de uma época de Paz e que aqueles, que outros fizeram nossos inimigos, voltem ao nosso convívio e que para o próximo Natal os possamos já juntar na mesa da nossa consoada.

Que para todos os Homens haja Paz, pois nós querida Mãezinha, batemo-nos para que isso aconteça e talvez por isso, nós os que fazemos a Guerra a saibamos apreciar melhor do que muitos outros.

E afinal, querida Mãe, depois de te ter escrito estes desabafos estou melhor como aconteceu sempre em toda a minha vida. A saudade que sentia, embora ainda seja imensa, já não é tão torturante. Agora sinto-me melhor!

Mãe, que o teu Natal seja o melhor dos Natais que houver no Mundo!

Beija-te o teu
FILHO


Transcrito por A.David do Jornal do B.CAV.1883 - «O Dragão» de Dezº de 1966

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Convivio do BCAV


 
Almoço convivio do Batalhão em Aveiras de cima - 2003
 

Histórias reais


 
Uma cratera com mais de cinco metros, está no meio do trilho. Pedaços de carne ensanguentada, pedaços de tripas, aos farrapos, estão espalhados pelas árvores.
Histórias de João Sena:

No chão, quatro soldados parecem mortos. Não se mexem. Deitam sangue pela boca. Ainda respiram e gemem.
O capitão ajudado pelo Zé Inácio e o Constantino, arrastam os corpos para detrás das árvores, para os abrigarem do fogo, que continua.
A batalha tem gritos de raiva dos vivos, gemidos dos feridos, e muitas ordens gritadas.
A floresta virou talho. O enfermeiro não sabe a quem acudir. O capitão ajuda o enfermeiro. Com um pouco de algodão limpa o sangue que em golfadas, corre da boca de um dos soldados.
– Ai, meu capitão, que eu morro...
– Calma, pá. Isto vai-se resolver! Zé, vai dizer ao furriel que peça imediatamente evacuação heli para cinco ou seis feridos muito graves.
O tiroteio não abranda. As árvores vomitam metralha.
– Mê capitão, o furriel não consegue entrar em ligação. Diz que a mata é muito densa. Lá atrás, o nosso alferes Hélder está também cercado de “turras”. Não o deixam passar para o morro.
– Corre lá Zé. Ele não se pode deixar isolar. Senão, nunca mais saímos daqui.
– Mê capitão, aqueles bocados de carne... nas árvores, … são do Silva?
O capitão limpa o sangue da cara de um homem arrastado para fora da zona de morte. Está lívido. As árvores entram, de repente, a rodar no carrossel gigante.
Sim é verdade.
Os pedaços de carne pendurados naquele açougue, eram tudo o que restava, do que em vida, fora soldado, se chamara Silva, fora algarvio e, momentos antes estivera a seu lado, respirando o mesmo ar.
O turbilhão gira e confunde.
Tudo é real e não tem nexo.
A realidade e o pesadelo são coincidentes.
– Mê capitão, o furriel já entrou em ligação...
– Diz-lhe que peça apoio aéreo... ao menos com foguetes... e insista nas evacuações.
– Ai, meu capitão, que eu morro...
– Calma... calma... isto vai. Onde te dói?
– Todo o corpo... mas, mais no peito... não consigo respirar...
– Já está, mê capitão.
– Zé, vai ver o que se passa com o nosso alferes. Vê se já está no morro. – dirigindo-se ao soldado atirador que estava mais perto – Éh pá ... éh pá ... passa-palavra "alto ao fogo".
O soldado gritou para o outro que lhe estava próximo:
– Alto ao fogo... Alto ao fogo…
Foram minutos eternos para haver silêncio.
Os gritos de dor dos feridos, balbuciados entre dentes, pareciam estar a ser transmitidos através de uma amplificação sonora.
– Ferimos uns gajos e, no local dos rastos do sangue, encontrámos estas munições de Kalash. Os “turras” iam-nos cercando. Eram mais de cinquenta a fazer fogo à ganância. Tenho o morro controlado com três equipas – disse o Hélder com a respiração ofegante e o suor a correr pelo rosto sombreado por uma barba de três dias.
– Bem... precisamos de transportar os feridos até lá atrás. Zé, dá aí uma ajuda... pega com jeito... para não fazer doer...
– Ai... meu capitão... eu vou morrer... eu vou morrer…
– Pastilhas, dá morfina a todos os feridos, senão isto nunca mais anda. Éh pá... passa palavra… para o Marinho vir cá.
Chegou o alferes.
– Meu capitão, o Quirino salvou a malta. Assim que o Silva bateu no cordão de tropeçar, rebentou a mina. Tinha amarrada uma bomba de avião de cinquenta quilos. O Silva ficou desfeito. Os gajos estavam emboscados do lado da equipa do Quirino. Começaram a fazer tiro de rajada, a varrer. Quirino, arrastou a equipa, saltou para cima deles e atacou com granadas e fogo. Se o gajo não tivesse feito aquilo... os “turras” tinham vindo agarra-los à mão. O Madeira foi também bestial; pôs a metralhadora a cantar, e, de joelhos, obrigou os tipos a enterrar os cornos no chão!
– Está bem. Confira rapidamente o seu grupo. Veja se falta alguém ou se desapareceu algum armamento. Diga ao Hélder para fazer o mesmo.
– Como estão os feridos?
– Não sei exactamente. Parece que bastante mal. Não sei se foi do sopro da explosão, se...
A frase é interrompida. Muitos tiros e explosões de granadas. Os dois oficiais, como que sacudidos por uma mola, rastejam, saltam como coelhos e fazem fogo para a direcção onde estava o inimigo.
Os arbustos, junto ao corpo do ferido, tinham sido decepados, instantaneamente, por uma tesoura invisível.
Eles voltavam à carga.
– Marinho, temos de atirar a sua tropa para cima destes filhos da puta... senão, isto nunca mais pára. Os cabrões podem estar a armar-nos alguma ratoeira – e gritando: – Façam fogo… mas só pela certa.
Duraram alguns minutos. A manobra do grupo foi efectuada. Os guerrilheiros, mal deram conta, retiraram. As suas fardas negras eram vistas de relance. O estalar dos ramos a partirem-se e o característico som das suas automáticas, anunciavam os que ainda combatiam. Cobriam a retirada dos seus companheiros. A simbiose entre eles e o terreno era perfeita. Quando estavam a retirar gritam:
– Vai p'ro Puto, tuga[1], filho da puta!
– Tuga... colonialistas... filhos da puta!
– Morte aos tugas salazaristas!
– Brancos cabrões. Fora dos nossa terra!
Os soldados não lhes ficavam atrás. A peixaria estava instalada!
Finalmente o tiroteio terminou.
– Mande apanhar os restos do Silva para um pano de tenda. Vamos recolher os feridos e preparar as evacuações. Veja se falta a arma de algum ferido – disse o capitão.
– Não falta. Estão todas. A do Silva ficou destruída, mas há ali umas peças retorcidas. As outras estão todas.
– Quantas são as baixas, exactamente?
– Estão a atacar a Alfa. Já têm dois mortos, e não consegui entender o número de feridos. Estão a pedir também evacuação, via rádio – disse o Alves Pereira afogueado.
– Isto não há dúvida que promete! A procissão ainda está só no adro. Vai ser um arraial dos antigos!
– Os hélis devem estar quase a chegar. Ouvi na rádio eles a pedirem a Luanda-Rádio, um avião de transporte de feridos para a Fazenda Margarido. Vão fazer as evacuações desta zona para a Fazenda.
– Temos de pôr isto imediatamente a andar. Comecem a remover os feridos. Você, Alves Pereira, continue em escuta.
– Meu capitão, o alferes Hélder já tem o morro tomado. Mas, daqui até lá, ainda é mais de um quilómetro.
– Meu capitão, do que restou do Silva, somente temos ali a cabeça com um bocado do peito, e um pé dentro de uma bota – disse o cabo enfermeiro.
– Pois é isso que se recolhe.
– Foi o que nós fizemos.
– E onde está?
– Naquele pano de tenda que o Botelho traz na mão – respondeu o Constantino.
Um soldado cabe num pano de tenda. Um outro soldado leva-o na mão, agarrado pelas quatro pontas!
Era cerca de meio-dia, quando se terminaram as evacuações. Três helicópteros baixaram, recolheram os feridos, e levaram o pano de tenda.
Só ao fim da tarde apareceu de novo o DO 27. Comunicou que no dia seguinte seria transmitida a decisão do Comando.
Mas esta não veio. Nem de manhã nem de tarde. Não havia jactos. Não havia tecto.
[1] Português
 

Vitor Cordeiro ESTA FOTO É A CAMINHO DO QUIEMBO, QUEM ESTÁ SENTADO NA ÁRVORE É O NOSSO CAMARADA DA GUERRA COMANDANTE JOÃO SENA E O QUE ESTÁ ESTENDIDO NO CHÃO É O SOLDADO CONDUTOR JOÃO RATÃO
 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

NATAL EM TEMPO DE GUERRA... 1


 

 À memória do nosso Camarada, VENÂNCIO MARINHO CRUZ,

morto em combate em ANGOLA, em 1968,e condecorado, a Título Póstumo, com a Medalha de Valor Militar de Prata, com Palma.

A dança ia começar! Ia ter início a operação a fazer até ao fim do ano de 1966.
Mentalmente, o capitão da Companhia Charlie do Batalhão de Cavalaria, recordou os efectivos de que dispunha. Talvez três grupos de combate[1]. O que importava agora, era saber qual o objectivo inimigo que iriam atacar.
Calmamente, apagou o cigarro no improvisado cinzeiro feito de uma das latas das rações de combate, pregado na madeira do pré-fabricado, "ÁREA RESERVADA ".
O capitão das operações estava sentado à mesa de trabalho.
– Então vamos ter festa?
– Vamos fazer uma operação de Batalhão.
– Muito bem. Conte coisas.
– Vamos atacar um quartel inimigo. Situa-se na margem direita do Dange, para os lados da Fazenda Maria Fernanda. É um quartel do MPLA. Vamos ali à carta de situação para eu lhe mostrar o objectivo.
Atravessaram a sala até à parede tapada por uma cortina. O sargento auxiliar das operações afastou-a.
No plástico estavam assinaladas, com muitos círculos e triângulos vermelhos, as referencias dos quartéis e agrupamentos inimigos, já que ali não havia populações.
– Como você pode ver, aqui, no fundo deste rio, junto da foz com o Dange, tem o MPLA um quartel. Julga-se poderem lá estar cerca de trezentos “turras”, bem armados. Há notícias da presença de eventuais instrutores cubanos. Têm atacado em emboscadas, na estrada do Piri e na picada que vai da Maria Fernanda à Missão.
– É aquele quartel referido no último "perintrep[2]"? Diziam ser a maior concentração inimiga no Norte de Angola.
– É esse exactamente. Julgo contudo que, se o atacarmos de surpresa, iremos ter grande sucesso. Basta um pouco de sorte. Vamos empenhar na operação as três Companhias operacionais do Batalhão. Você, por ter a tropa mais descansada, fará o golpe de mão ao objectivo. A Alfa desce desde a picada da Missão, por este rio abaixo – apontava na carta – para dar tempo a que a sua tropa se aproxime do objectivo. Ao nascer do sol, no dia D, a aviação desencadeia um bombardeamento, competindo à Companhia Alfa impedir a retirada dos elementos inimigos que eventualmente pretendam vir a escapar-se pelo rio Dange. A Bravo constituirá de reserva do comando. O posto de comando será montado na fazenda Margarido, onde, como sabe, há a pista de aviação. Eu e o Comandante, iremos para lá durante a operação.
– Mas a distância da picada entre a Maria Fernanda e a Missão ao tal quartel inimigo é muito grande. Deve ser mais de um dia de caminho.
– Não há problema, pois a PIDE tem um prisioneiro que conhece bem a região. Você vai levá-lo como guia.
– Segundo li no "perintrep", todos os trilhos de acesso ao quartel estão armadilhados. Eles têm vigias sobre a picada e os trilhos.
– Parece que assim é. Você e a sua tropa vão ser lançados de noite. Quando o sol nascer já estarão infiltrados na mata e muito longe da picada. Resumindo: irão daqui para a Maria Fernanda em coluna auto. A Companhia Bravo incorpora-se na mesma até à Fazenda Margarido. Para garantir a eficiência das comunicações e guarnecer o posto intermédio de transmissões, um dos seus grupos de combate ficará na Missão. Sob o seu comando, os outros dois grupos de combate fazem o golpe de mão.
– Mas para aquele objectivo decisivo, não acha pouco só dois grupos de combate? Nós vamos atacar! Não vamos defender!
– Você sabe tanto quanto eu: quantos mais forem, maiores são as possibilidades de não ter sucesso no golpe de mão. O factor da surpresa aqui, é determinante. – Acendeu um cigarro e continuou: – No dia D menos um, de madrugada, cerca das quatro da manhã e já sem lua, a coluna auto parte da Maria Fernanda para a Missão. Vocês saltam das viaturas em marcha, de modo a não denunciarem o local do lançamento. Internam-se imediatamente na mata e, uma vez reagrupados, iniciam a marcha. Até aqui tem alguma dúvida?
– Não. Pode continuar.
– Como lhe disse, a Companhia Alfa também irá consigo até à Missão. Quando o sol nascer, inicia a progressão apeada nesta direcção – marcou, com o lápis dermatográfico, uma seta azul no transparente – enquanto o tal grupo de combate toma conta das viaturas, guarnece a posição e vai preparar e melhorar a posição defensiva para as transmissões. É possível que os “turras” venham a chatear com pequenas flagelações. Até será bom para si. Servirá de manobra de diversão. Há imensas probabilidades de não serem detectados.
– Não sou tão optimista. Depois se verá, como diria o cego...
– Como está realmente a sua Companhia no que diz respeito a efectivos?
– A malta está muito apalpada ainda da operação Quissonde... de qualquer forma, poderei arranjar dois grupos de combate, reduzidos, claros!
– Somente dois grupos? O que é feito do resto do pessoal da Companhia?
– Há gente no Hospital em Luanda e ainda não foram feitos os recompletamentos[3] desde que saímos de Lisboa. Mas para este tipo de acções nem todos servem. Há que fazer selecção e uma selecção, entre tão poucos, não garante lá muita qualidade, não acha?
– Os que não sirvam para ir ao golpe de mão podem ficar no grupo de combate que guarnece a Missão.
– Não é aí que está o problema, mas sim, na escolha daqueles que têm de ir comigo. Também não vou mandar para a Missão só pessoal que não possa resistir, pois tenho a certeza, diria que absoluta, de que irá haver “molho” de verdade. Não me passa pela cabeça pôr no posto intermédio de transmissões, fundamental para a manobra, só guarnecido por "bazarucos[4]"!
– Fará como entender. O problema é seu. A partir de amanhã teremos à nossa disposição, um avião DO-27 para o posto de comando. No dia D, ao amanhecer, quatro jactos farão um bombardeamento de ataque ao solo. Depois, como você já deve estar perto, fará imediatamente a exploração do sucesso. Pode até orientar e pedir o apoio de fogo que quiser. Os jactos são comandados pelo seu amigo major Brito. Acredite: vai ser um sucesso para si e para o Batalhão. Imagine a cara dos "ares condicionados" do Quartel-General em Luanda, quando souberem que nós, somente com o Batalhão, fomos capazes de tomar o grande quartel N'Galama Piri ao MPLA!
– Veremos depois. O terreno é muitíssimo acidentado e a vegetação não pode ser mais densa; nem se conseguem ver os aviões. As transmissões são outro problema. Nesta época de cacimbo tenho sérias dúvidas de que os jactos tenham tecto[5] logo de madrugada.
– Aqui tem o seu exemplar da ordem de operações. Não se esqueça de contactar o Migalhinhas por causa da sintonia de todos os rádios.
– Muito bem. Por quantos dias vai durar a operação?
– Estimamos quatro ou cinco dias, incluindo as marchas de ida e volta.
– Isso é que é optimismo! Na melhor das hipóteses regressaremos na véspera do Natal. Se houver um “atascanso” na picada ou coisa do género, arriscamo-nos a passar a consoada a ração de combate e o Natal aos tiros!
– Olhe, meu caro, isto é uma guerra. Não é uma colónia de férias. Tudo o que necessita saber está na ordem de operações. Resta perguntar ao Comandante se lhe quer dizer alguma coisa.
Dizendo isto, atravessou a sala, desviou a cortina, e entrou na pequena dependência, que servia de gabinete do coronel.
– Dá licença, meu comandante? Está aqui o comandante da Charlie. Recebeu já a ordem de operações para a operação "Alta Escola”.
O comandante assomou à porta.
– Boa tarde, capitão. Parece que o oficial de operações já lhe explicou tudo. Se tiver algum problema de logística, fale com o nosso major. Recomendo-lhe pontualidade na saída. Detesto atrasos.
– Farei por que haja pontualidade.
– Dá licença, meu comandante?
O padre capelão, sem esperar resposta, ia entrando. Esfregando as mãos, aproximou-se da mesa do Comandante.
– Há novidade, capelão?
– Disseram-me que vai haver uma operação muito grande, e vinha lembrar, que temos preparada a festa do Natal... se vão todos os homens que temos estado a ensaiar, não sei como irá ser...
Uma vez mais, os altos segredos da guerra tinham falhado. Lá fora já toda a gente sabia! O tenente capelão continuou:
– Se os rapazes da orquestra e os que têm estado a ensaiar não forem dispensados, julgo que não vai haver festa de Natal.
– Capelão, quem lhe disse que iria haver uma grande operação?
– Ai, meu capitão, toda a gente o sabe! A mim disse-mo o sacristão, por o ter ouvido a outros soldados na loja do Russo. Agora veja, quando aquele pateta o sabe... isto no fundo é uma grande família, meu comandante!
O capitão de operações reagiu:
– Assim não pode ser. Há aqui uma fuga de informação impressionante. Os nossos planos, a estas horas, já devem ser do conhecimento dos “turras”, com tantos assalariados que tem o civil! Isto assim não pode ser!
– É efectivamente uma grande maçada esta fuga do segredo!
Disse o comandante, sempre imperturbável; voltando-se para o capelão, acrescentou:
– Capelão, haverá festa de Natal e operações; não se preocupe! Mais alguma coisa?




nota: ESTA SÉRIE DE ARTIGOS TEM UM FUNDO MUITO REAL. FOI RETIRADA DO LIVRO DE BERNARDINO LOURO, "ESCRITAS NA AREIA" .